domingo, 4 de novembro de 2012

Por favor, viva


Tão pouco tempo para tantos momentos infinitos, tão pouca vida para tanto por aqui e por ali, tanto por experimentar por cá e por lá! E no outro cômodo, gente deixando vida escorrer pelos dedos, do pouco que resta, porque não soube fazer, porque não soube ouvir, porque não soube viver...

Quem por essas letras gastar retina, por favor leve consigo a necessidade de viver. Faça uma lista, pense, organize, esquematize, cheque para ver se não esqueceu nenhum instante necessário.  

E... viva. Por favor, viva.

Aos pouquinhos, aos muitos, aos borbotões, viva. Aqui e ali. No instante. No vento e na chuva. Na vitória do time, ou do piloto, ou do filho, ou de qualquer um que o deixe orgulhoso de compartilhar o bom momento. No discurso criativo do camelô, a distração da sua viagem. Nas viagens, nos pousos e decolagens. Nos momentos grandes e nos pequenos. Nos abraços apertados - ah, os abraços! Como aliviam, como renovam, como são infinitos os abraços! Nos silêncios. Não tema os silêncios. Cultive os silêncios, viva os silêncios, só no silêncio deixa-se ouvir os próprios sussurros. Nos instantes de tensão - eles também fazem viver, fazem o coração bater como não se sente toda hora. Seja feliz, busque ser feliz como se não houvesse outra opção, porque as outras opções não valem mesmo a pena. Deixar momentos de felicidade boiando ao longe podem trazer arrependimentos irreversíveis.

Sofrer não é vitória, e ser feliz não é vergonha.

Por favor, viva, o tempo é curto. Daqui a algumas décadas, conferimos o resultado. Não vá dizer que eu não avisei. Aliás, eu e Vinicius:

"Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Ponha um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba"
[trecho de Samba da Bênção, Vinicius de Moraes]

domingo, 14 de outubro de 2012

Beijo Apertado


     Ela ganhou um Beijo Apertado, e o segurava nas mãos, pensando no que aquilo significava.

     Apertado devia ser adjetivo de abraço, mas a mistura muito lhe agradava. Um beijo apertado vinha coladinho num abraço de muitos abraços e poucos espaços, juntinho como devem ser os abraços e os beijos no ponto do ônibus, onde o espaço não é muito, de qualquer jeito.

     Lembrou que os abraços de ponto do ônibus estavam suspensos até segunda ordem. Ou pior... suspensos para quase sempre. Apertou o Beijo Apertado entre os dedos, inconscientemente, para que não fugisse. Ele resmungou e deu uma mordidinha. Naturalmente... afinal, de onde veio aquele beijo, resmungos e mordidas eram mais naturais que um Bom Dia entredentes.


     Lembrou que os Bom Dia entredentes também estavam suspensos... e teve vontade de resmungar também. Repetiu que odiava saudade, que amigos a gente cria pra ficar aqui do lado, e não lá longe. Cantou com Sérgio Reis e não se preocupou em ser brega: "Quem inventou a distância... não conhece a saudade..."

     Largou-se apreensiva por um momento, e escutou a chuva lá fora. Nada como o barulho de chuva para acertar desencontros. Sorriu. Ela tinha o beijo apertado nas mãos, só dela. E um monte de instantes interessantes fora da caixa e entupidos de argumentos para compartilhar. Que, de repente... poderiam valer como moeda de troca para mais alguns beijos apertados.

     Ficou feliz por se construir de razão - e tentar conter escorregões com isso. Guardou o Beijo Apertado na divisão de instantes infinitos, abraçou o gato, virou para o lado e foi dormir. Há um tempinho, o dia de amanhã estava sendo mais interessante que o de hoje. Boa rotina para se ter e manter.

***

     Mulheres exatas são mesmo bugs da sociedade.

sábado, 15 de setembro de 2012

Quando as Luzes se Apagam


Letreiros. Algazarra. Ao fundo, a voz conhecida de um desconhecido ator de novela. Em meio a guarda-chuvas apressados e furiosos faróis de neblina, apenas uma pequena estrela, em meio às pesadas nuvens, parece saber que é noite. Amigos conversam ruidosamente sobre o último lançamento tecnológico. 

Do outro lado da rua, enquanto letreiros luminosos anunciam o próximo show da boate, um casal preocupa-se com a hora: é hora de despedida. O dono do bar conta o faturamento do dia, pensando que o crediário da TV LCD não poderá ser pago. Mentes se irritam, bocas trabalham, olhos percorrem o cenário em busca de mais e mais informação.

De repente, sem aviso, escuro total.

Por um momento, o vento e uma manutenção mal-feita fizeram tudo parar. Não há música. Não há letreiros. Não há nenhum acidente trágico na tela da televisão. O único ruído que se tem vem da boca daqueles que construíram todo aquele aparato: os homens. Aos poucos, enquanto as retinas se habituam com a situação inesperada, as mentes se acostumam com a ideia de conviver com um mundo que não lhes pertence.

Velas. Após o torpor inicial, surge o instinto de fazer fogo, de criar luz. Aos poucos, pequenas chamas surgem nos balcões, por entre as frestas das janelas, em cada canto. A imagem fraca e insegura que se forma em torno do atendente da padaria da esquina é irreal, e faz com que o pedestre preste atenção em cada ruga de sua cansada face.

No bar, os amigos se calam. Sem saber porquê, aquele assunto sobre o novo computador biológico deixou de ser tão interessante. O casal, sem perceber, está abraçado, reconhecendo aos poucos o novo terreno. Não se escuta, através das janelas entreabertas, o ruidoso tormento televisivo. Nenhuma voz metálica diz a todos o que fazer. Que fazer?

A hora parece não passar. Os carros que cortam o cruzamento principal já não parecem tão furiosos. Cortam a escuridão misteriosamente, e misteriosamente somem. Como que encantados, os jovens amigos são convidados pelo som das ondas a contemplar a praia. O dono do crediário já nem encontra significado para a palavra “vídeo-cassete”, de olhos fechados, ouvindo o vento açoitar as palmeiras. Nessa violência pacífica da natureza, também está embalado o casal, não mais apaixonado, agora enamorado.

Ele pega a mão da moça, como se nunca a tivesse sentido. Corre-lhe pela espinha uma sensação peculiarmente nova. Misturam-se ansiedade e medo, prazer e descoberta, em um gesto tão singelo.  Se não fosse a escuridão, ela poderia ver os olhos dele brilhando, pouco antes do beijo. Aquele, que foi o primeiro, mesmo com tantos outros antes.

Ao lado da padaria, vê-se uma cortina verde, semi-transparente, balançando. Atrás dela, uma senhora borda o enxoval de sua neta, à luz de um lampião. A seus pés está uma menina, de vestidinho branco e laçarote rosa-bebê. Brinca com sua boneca de pano, caprichosamente costurada, feita especialmente para ela.

A cortina balança com mais intensidade. A chama da vela parece mais fantasmagórica, na padaria ao lado. O português, já terminado o serviço, observa a senhorita que atravessa a rua. Preocupada em não molhar as saias rendadas do vestido, anda nas pontas dos pés. Um jovem, de botas e cuidado bigode, gentilmente pára sua charrete para que a jovem suba. Os cavalos parecem não se importar com a chuva.

O casal faz planos para o futuro. Uma casa grande, muitos filhos, muitas alegrias. O rapaz quer um menino. Ela, uma menina. Sonhos de um futuro já passado.

Em um canto, solitário, está a pena do escritor, riscando o papel ferozmente. A tudo observa, tudo transcreve com habilidade de mestre. O pergaminho sempre insuficiente: tão pouco espaço para descrever o que via... A estrela sobrevivente às nuvens; as piruetas revoltas do mar ao fundo; o farol, como guia para os frágeis navegantes; o casal, de mãos dadas, à beira da marquise – sapatos cheios de lama, olhares cheios de quimeras; o padeiro, de olhar longe, lembrando das terras além-mar e dos campos da infância; a rua de terra, enlameada, disforme por causa das pesadas rodas de carroça – e dos bravos cavalos; a criança e sua boneca, a avó e seu bordado; a luz estonteante das velas e dos lampiões... Tudo está ali, novamente ali, nas retinas e no nanquim do poeta...

De repente, o clarão. Os técnicos conseguiram. Os olhos se fecham furiosamente, assustados com o brilho inesperado. A música volta a tocar. O letreiro da boate vibra. O mar já não é tão interessante. Qual era mesmo o nome do novo chip?

A moça olha a hora. É hora de ir! Diz que o pai dela a quer de volta em casa, mas o que realmente a chama é a novela das 9. Um beijo de despedida, ousadamente frio. Ele pensa em passar na casa da vizinha solitária.

A padaria fecha, amanhã cedo é mais um dia de trabalho.

O dono do bar passa um pano no balcão.

O escritor se desespera, ao olhar sua caneta esferográfica riscar o caderno de capa dura. As luzes se acenderam. O sonho se apagou.