segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A Saga de um Molar

Para os criacionistas:

"...e então, Eva provou do fruto proibido. Deus ficou furioso e desceu ao Paraíso esbravejando: 'vocês condenaram toda a humanidade ao frio, à fome, ao engarrafamento da Avenida Brasil e à dor de dente eterna!'"
Para os darwinistas:
"...e os membros mais fortes de cada espécie foram sobrevivendo, em detrimento daqueles que possuíam deficiências para viver. Exceção a isso são os dentes: eles provocam problemas a todas as espécies até hoje."
Para os realistas:
"Dente filho da puta!"
 Como realista que sou, gostaria dividir com vocês a saga do meu molar inferior esquerdo (à direita de quem vê). Depois de dezesseis consultas dentárias, uma semana de dor lancinante e muitos meses de idas e vindas de um inefável bloco de porcelana, hoje volto a mastigar normalmente. Entre tantos episódios e salas de espera, houve tempo de sobra para filosofar sobre meus dentes. Na verdade, sobre todas as arcadas da humanidade.

Dente é um ente ingrato. A gente escova, bochecha, mastiga, divide com ele os prazeres de um camarão ao alho e óleo, mas uma hora ele retribuirá esse companheirismo com uma pontada, no momento mais inoportuno. Sim, porque nunca há momento oportuno para dor de dente, e existem poucas doenças mais inconvenientes do que uma "polpa danificada" (causa do bendito tratamento de canal). Talvez uma dor de barriga seja mais inconveniente. Só que não existe Imosec para dor de dente.

Todo mundo tem uma história trágica envolvendo seus dentes ou os dentes de alguém bem próximo. Se eu ganhar na Mega da Virada, vou encomendar ao Ibope uma pesquisa sobre quanto dinheiro é perdido no Brasil anualmente, em atrasos e faltas de trabalhadores com dores de dente. O tempo perdido certamente superará os milhões economizados com o horário de Verão, ou desperdiçados com feriados sem muita eira, como o de 20 de novembro. Pelo menos no dia do Zumbi a gente descansa.

Nada contra os dentistas, preciso destacar. O barulhinho do motor deles é música para os meus ouvidos, levando a dor embora. Claro que guardo um ressentimento dolorido do início da saga do meu molar, que gritava por um tratamento de canal, quando uma energúmena odontóloga dizia que o problema era gengiva. Dias depois uma segunda energúmena odontóloga explicou que não era a gengiva, era o siso. Siso o escambau, era o molar. Deus salve o terceiro dentista que me consultou depois de uma semana de pesadelo, e me livrou daquela dor bizarra. Preciso resgatar os nomes desses três personagens; em breve coloco aqui, a quem interessar possa.

Depois de ter um dente em ordem, a gente fica até meio emotivo. Por isso, aos que aturaram minha dor de dente, meus agradecimentos especiais - ao namorado, que foi sumariamente convocado em todos os almoços doloridos, e me ajudou a engolir purê de batatas com menos sofrimento; ao meu avô, que me levou ao dentista uma semana antes de infartar (aliás, vale ressaltar que meu avô infartou e desenfartou, com direito a cateterismo e angioplastia, antes que eu completasse a saga do meu molar; nesse momento, graças a Deus, ele está ali na sala vendo a novela); aos parentes e amigos de trabalho que aturaram minhas caras feias, choramingos e corridas ao dentista. Curioso mesmo é eu não ter escrito um agradecimento desse tipo na minha formatura. Acho que a faculdade doeu menos.

Como toda saga tem uma continuação, imaginemos um fim visual para esse último parágrafo. Um sorrisão bem grande, feliz, contente, de quem terminou um tratamento dentário com sucesso. A câmera vai se aproximando do sorriso, de todos os dentes, foca em um deles e vai se aproximando, chegando mais perto, e mais perto, mostrando o esmalte em detalhe. Chega tão perto que faz um raio-x do sorriso e chega à polpa do, digamos, molar superior esquerdo (à direita de quem vê). Lá dentro, um novo nervo raivoso pulsa, pulsa, pulsa, pulsa... Fim. Trilha sonora, sobem os créditos.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Já dizia a minha avó

"Nego pensa que merda de pinto é ovo". Não só a minha avó dizia, como continua dizendo, de bengala em punho, bradando suas convicções para quem quiser ouvir.

Mal sabe ela como está complicado, atualmente, lançar um dito popular numa conversa, ou numa briga, ou numa frase de parachoque. Pensando melhor, talvez ela até saiba, mas pouco se importa, e fala mesmo. É por isso que eu adoro a minha avó.


À exceção da minha avó e de alguns outros indivíduos, envelopados e selados com "alienados da sociedade atual" no lugar do remetente, e "afastamento e desdém público" no destino da correspondência, todas as outras pessoas passam hoje por um dilema psicossocial de fundo relativo: o uso das frases feitas.

"Quem com ferro fere, com ferro será ferido" é um exemplo. O sujeito escreve isso em sua linha do tempo no Facebook, digamos, só porque lembrou do bisavô que repetia essa frase. Imediatamente, uma amiga enojada com tamanha violência responde que é por isso que o Brasil está como está, com Amarildos desaparecidos, por conta desse "olho por olho, dente por dente" - e olha que essa frase feita está feita desde a Bíblia. Alguém vai citar as torturas da ditadura, e perguntar no final: "é isso o que você quer para os seus filhos?"

"Filho de peixe, peixinho é" seria outro problema, com duas conotações diferentes. Numa primeira olhada rápida pela timeline (porque todas as olhadas pela timeline são rápidas), uma frase dessas poderia soar absolutamente desestimulante para os jovens, dominadora e intransigente. Repare: se o cara é pedreiro, marceneiro, bombeiro hidráulico, ele precisa querer que o filho seja doutor. Se é um advogado bem sucedido, deve desejar que a filha seja psicóloga de cães ou astronauta, para não ouvir para todo o sempre que está "na sombra do pai". Seja qual for a experiência, a vida, as conquistas do pai e da mãe, ensinar o legado para o filho parece pequeno. Antes, não havia escolha; agora, tem-se que optar pelo diferente. Uma pena: nunca foi tão difícil encontrar um bombeiro hidráulico que saiba o que está fazendo, ou um marceneiro com orgulho de suas obras. E, convenhamos, eles são muito mais críticos na sociedade do que os psicólogos de cães. Nada pessoal.

O ditado do peixe traz ainda outra questão: os filhos à distância. Hoje está na moda fazer tudo à distância: curso à distância, faculdade à distância, conversa à distância, namoro à distância. Seguindo a tendência, um grupo de pais bolou a criação de filhos à distância, e a ideia se espalhou. Seja por falta de tempo, dinheiro, paciência, status social ou um pouco de cada, muita gente vê os filhos, esporadicamente, nos fins de semana, se chover. Todo o resto do tempo fica na conta de terceiros: uma ou outra avó (se houver), e babás de todo gênero. Daí, cai por terra o nosso ditado popular. O filho do peixe poderá ser um sapinho, de repente, se a mãe deixá-lo todo dia às sete da manhã na lagoa, aos cuidados de uma anfíbia bondosa.

"Um dia da caça, outro do caçador" ganharia a fúria dos vegetarianos, dos protetores de animais e afins. O "boi de piranha", então, ganharia fotos grotescas do processo, como denúncia.

"Deus sabe o que faz". Ou não. Se soubesse, talvez não existissem tantos ateus discordando, evangélicos gritando, umbandistas reivindicando por aí. Talvez seja de propósito: depois de usar o livre arbítrio a torto e a direito - mais a torto que a direito - de repente Deus ficou cheio dos humanos e deixou correr, só pra ver o circo pegar fogo. Aliás, deixar "o circo pegar fogo" é uma grande maldade com os palhaços.

"Quando um não quer, dois não brigam" caiu em desuso total. Depois das redes sociais, blogs, crônicas e etcéteras, a coisa mais fácil de se fazer hoje em dia é brigar sozinho. Dá até pra discutir e comentar a própria opinião. Dependendo do nível de argumentação, indignados nível pró são capazes de discordar de si mesmos.

E por aí vai. Em tempos em que tudo é relativo, não se encontra conforto nem nos ditados populares. No fim, paga-se o justo pelo pecador. Mas é assim mesmo, águas passadas não movem moinhos. Ou talvez movam, depende do que os cientistas dirão semana que vem, para contradizer no próximo mês.

Já dizia minha avó: focinho de porco não é tomada. É por isso que eu adoro a minha avó.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Quero ver o resultado


"5 x 0. Pelada.", foi o que respondeu quando perguntaram o resultado do jogo do América.


Só ele ainda sabia os resultados dos jogos do América. Mais por causa da Loteria Esportiva - ele ainda era desses que preferia a Loteria Esportiva -, do que pelo gosto futebolístico herdado do avô. Ou apenas para alimentar seu curioso vício. Por resultados.

Começou com o resultado do teste do pezinho. "Tudo em ordem", disse o médico ao pai sério. Mal sabia o Ari que, com algumas gotinhas de sangue impressas em um formulário médico, estava iniciado um processo que nunca o abandonaria.

Quando chegou em casa depois do primeiro dia de aula, suado e vermelho, o pai o chamou num canto e sentenciou: "Quero ver o resultado de seus estudos". Ajeitando a franja molhada, Ari aceitou o desafio, e trazia todas as semanas na agenda a estrela dourada da professora. Só teve problemas uma vez, quando foi pego arrancando a estrela da agenda da Juliana, para colar na sua. Não entendeu motivo para tanto estardalhaço, afinal, o que importava era o resultado.

A época de vestibular foi a glória para ele. Já não importava para os professores e coordenadores o conteúdo, os debates ou as feiras de ciências: o que valia era o resultado nas provas. Ari lia resumos dos colegas, pegava provas da outra turma, colava através de técnicas elaboradíssimas. Chegou a criar um esquema de espelhos côncavos que refletia a prova do nerd da turma em seu relógio de pulso. Infelizmente, o professor de física percebeu o intento, e embora orgulhoso do aluno, removeu a instalação minutos antes da avaliação.

O resultado no vestibular não foi tão bom quanto os anteriores - aparentemente, conseguir as respostas antes da correção não é tão fácil quanto pode parecer nos noticiários. Queria fazer estatística, mas virou atendente na lotérica do tio. A frustração pela falta de resultado acabou passando em alguns meses, quando conheceu Amanda, por quem se apaixonou perdidamente em um fim de noite de sábado.

Resultado: Lucas, que nasceu 9 meses depois dessa louca paixão de 5 (ou 6) cervejas. Ari aumentava a TV para ver o futebol, quando o menino chorava mais alto. Acompanhava os resultados do América e dos outros times com precisão matemática, e podia pagar o prêmio da Loteria Esportiva sem conferir os jogos.

Vez ou outra Amanda reclamava que "ele chegava muito rápido ao resultado". Ari não entendia como o foco no resultado poderia ser um problema. Amanda tentou explicar três ou quatro vezes que nem sempre o resultado é o mais importante, depois desistiu: era um vício mais forte do que ela.

Junto com a Loteria, Ari passou a apontar Jogo do Bicho também. Conhecia todas as lendas envolvendo os resultados: "Joga no coelho, Dona Amélia. Tem meses que não sai coelho, essa semana vai."; "Sonho tem que fazer três jogos seguidos, senão não dá o resultado". Conseguia uma clientela razoável com sua lábia, mas depois que prenderam o bicheiro, Ari deixou de colar os resultados no poste.

Parou de acompanhar a Fórmula 1 depois que o Rubinho deixou o Schumacher passar, em pleno dia das mães. Não achava digno que alguém abandonasse o primeiro lugar assim, por ordens superiores. Foi cabo eleitoral de um candidato a vereador vizinho seu, e ajudou a turbinar o resultado das urnas com distribuição de raspadinhas junto aos santinhos. Virou voluntário nos jogos Pan-americanos do Brasil, só para alterar o placar nos torneios de tênis de mesa.

Já estava na terceira idade quando Amanda o trocou pelo padeiro. Ficou estupefato ao saber que o homem que o derrotara no amor era um barrigudo sem metas na vida, e cujo único objetivo era deixar o pão fofinho antes das 6 da manhã. Dizem as más línguas que Amanda anda com um sorriso no rosto, falando por aí que o João não tem a menor pressa para chegar ao resultado.

Na praça, os amigos evitavam Ari no dominó e no baralho. Partidas com ele precisavam ser completadas na maior concentração, e era preciso tomar cuidado para que não tirasse uma carta da manga - literalmente - só para fazer uma canastra. Muitas vezes, ele sobrava sozinho na mesa jogando paciência, esporte de que gostava intimamente, já que era sempre o campeão.

Aposentado, filho e netos criados, ex-esposa mantida a pão-de-ló pelo padeiro, Ari não tinha mais muitos resultados a alcançar. Mantinha apenas as apostas na Esportiva e na Mega Sena, mas depois de anos lidando com jogos, sabia que esses eram resultados com os quais só se sonha.

Num fim de tarde, olhando o pôr do Sol pela janela, ele se perguntou como o astro-rei ia e vinha todos os dias, sem alcançar um objetivo, e mesmo assim não perdia sua grandiosidade. Contemplou os últimos momentos de claridade, até que a brisa empurrou o frescor da noite quarto adentro. Passou a madrugada acordado, pensando em tudo o que não percebeu, enquanto corria para os objetivos. O Sol já voltava a brilhar quando notou que não havia dormido. Ia guardar os pensamentos na gaveta e deitar, quando viu o bilhete da Mega Sena sobre a mesa.

E se ele tivesse ganhado? O que faria? Buscaria outros resultados? Compraria casas, a mulher de volta, colocaria o América de volta na primeira divisão? Apostaria em cavalos, faria campanha para que o vizinho vereador virasse Prefeito? Seria uma celebridade, e postaria as fotos do sucesso no Facebook?

Não. Tudo isso era resultado, coisa que ele colecionara durante a vida. Decidiu que, se tivesse a chance, apostaria tudo no caminho, e não no destino. Seria um anônimo a aproveitar os dias que lhe restassem, os nascer de Sol por todos os ângulos, os sorrisos e os "bom dia" dos vizinhos. E as disputas de quinto lugar, o orgulho de quem chegou em último mas estava feliz em participar. É, isso o que faria. Pelo menos depois de uma noite de elucubrações, foi o que concluiu, o olhar brilhando.

Observou o bilhete mais uma vez. Talvez fosse tudo besteira de uma mente entorpecida. Talvez não. Pegou o pedaço de papel, pôs no bolso, calçou os sapatos e saiu em direção à loteria. Ao trancar a porta, pensou alto:

"Quero ver o resultado".

domingo, 13 de janeiro de 2013

Homenagem Póstuma

Daí que o cara morreu.


Apareceu morto em frente a um muro, grafitado com a seguinte inscrição: "Sou Foda". Como era domingo e a rua do centro onde jazia ficava deserta nos fins de semana, levou algumas horas até que um gringo perdido encontrou o corpo. Em choque, o alemão desviou do pivete que ia assaltá-lo e correu até um fiscal de ônibus, que cochilava no ponto final. Depois de alguns entendimentos em inglês luso-germânico, a polícia foi acionada. Como ainda arfava depois de duas horas, quando a viatura chegou, os policiais arrumaram uma água-com-açúcar para o gringo no boteco, enquanto o fiscal comprou um saco de pipocas e voltou a dormitar.


Chegaram ao local. O defunto estava lá, com sua cara de morto, e em nada seria diferente de tantos outros defuntos, não fosse o polegar direito voltado pra cima, em sinal de positivo. Reparando o joinha e a inscrição no muro, o PM que saltou da viatura sentenciou: "Esse cara é foda, hein?"

Antes que o outro policial proferisse uma segunda observação técnica, um Palio meio torto parou ao lado da viatura. Uma moça pequena com uma máquina fotográfica grande saltou do carro, e começou a ajustar o foco. O policial perguntou quem era ela, e de onde diabos tinha saído. Ela disse que era repórter de um blog, que passou pelo gringo arfante no ponto final do ônibus, e que tinha acordado o fiscal para que lhe contasse toda a história. E ali estava, fotografando o corpo do artista.

"Do artista? O presunto é artista?", perguntou o cabo Fragoso.

A repórter disse que devia ser o autor do grafite no muro. E que deveria ter morrido após uma disputa territorial, ou uma confusão por direitos autorais, ou mesmo um desentendimento com a sogra. De qualquer forma, depois que descobrissem quem era o artista, daria uma boa matéria. O policial ponderou as hipóteses, num muxoxo. Decidiu que a moça não era relevante, assim como o motivo pelo qual o morto havia morrido. Não era da conta dele. Deixou que a jovem fizesse as fotos, antes de continuar com o procedimento padrão.

Juliana aproveitou todos os ângulos possíveis, não podia perder aquele momento. Gostava de fotografar estátuas de cemitérios, mas essa era a primeira vez que estava frente a frente com um morto ainda não enterrado. Quando foi para casa, pensava no sucesso que seria a foto focada no dedão estendido do defunto, com a grande inscrição "Sou Foda" como pano de fundo. Os dez seguidores de seu blog certamente iriam curtir, e talvez ela conseguisse finalmente a aprovação do namorado, de que era uma boa fotógrafa.

A foto havia ficado realmente um espetáculo. Juliana nem precisou de muitos filtros para deixá-la perfeita. Ao criar a postagem no blog, porém, surgiu uma dúvida: como descreveria aquela cena?

Procurou no Google alguma referência ao grafite no muro. Depois de muito tempo - quase quinze minutos, uma eternidade para quem busca informação na Internet - encontrou uma foto de um grafite bem parecido, com o artista criador na frente. E, para felicidade de Juliana, o grafiteiro posava fazendo sinal de positivo. Era ele. Só podia ser ele. Joinha.

E assim ela postou sua homenagem póstuma a Calderón, o grafiteiro que aparecera misteriosamente morto sob sua obra. De sua alegria, restou apenas o sinal de positivo, demonstrando que o instinto de ver a vida positivamente pode vencer até a morte. Juliana ficou orgulhosa de sua última frase, e quase ficou verdadeiramente emocionada com a perda.

Acontece que aquele dia estava ruim de matérias. E o editor do grande jornal precisava encontrar algo mais interessante do que a bunda da BBB, que tinha aparecido enquanto ela trocava de roupa. "Como se não aparecesse no resto do tempo", pensou quando aprovou a manchete. O editor queria sugerir que só chamassem novas BBBs com tatuagens na bunda, para ficar mais fácil de diferenciar uma da outra e criar a legenda da matéria. Mas a vida era assim, se não choveu o suficiente pra dar tragédia, contenta-se com BBB na capa. Agora pesquisava uns blogs desconhecidos, em busca de um fotógrafo mais talentoso. Foi quando se deparou com um post emocionado de uma fotógrafa iniciante.

"Putz, o Calderón morreu! Talita, chegae, achamos matéria!"

A bunda da BBB foi rapidamente substituída pelo obituário de Calderón. Uma pequena comoção tomou conta da editoria, mesmo que ninguém soubesse, no íntimo, quem era aquele cara. Por trás do rosto de pesar, os repórteres rapidamente jogaram o nome do grafiteiro no Google, para descobrir quem diabos era o artista. A busca por imagens trazia mensagens de protesto em muros alheios, e rapidamente toda a equipe da redação conhecia Calderón, desde pequenininhos. Em meia hora, a matéria estava pronta e aprovada para a versão online. Que dor de cabeça eram essas versões online, leitor nunca entende que não acontece nada domingo à tarde, exceto em dias de Fla-Flu e de GP de Interlagos.

O repórter que escreveu a matéria foi o primeiro a compartilhar a notícia no Facebook, seguido por amigos, e por amigos de amigos. Quando o primeiro Zona Sul amante da arte viu a matéria, ficou comovido. "Calderón! Logo o Calderón, como é horrível a violência urbana". Resolveu fazer sua homenagem particular: reproduziu o sinal de positivo encontrado no morto, com estilizações da mãozinha de Curtir do Facebook, e escorreu do polegar algumas gotas de sangue. Postou. Em minutos, dezenas de artistas amigos dele haviam curtido a homenagem.

O jornal concorrente viu a matéria, e publicou minutos depois. A redação internacional, parceira, tratou de criar uma nota em outras línguas, com um breve resumo de vida e obra do grafiteiro. O jornal sensacionalista estampou na primeira página: "Presunto é foda e dá joinha depois de morto".

A estudante ficou impressionada com a notícia e achou que não poderia deixar passar em branco um acontecimento tão chocante. Mudou seu sobrenome no Facebook para "Sou Foda". "Carolina Sou Foda" mudou também a foto de capa, com a foto original do morto com o polegar levantado e o grafite ao fundo. Só para que todos entendessem a homenagem, e nenhum desavisado achasse que era só uma demonstração de soberba.

Os amigos, os amigos dos amigos e alguns amigos dos amigos dos amigos de Carolina acharam muito cult a ideia, e também trocaram seus sobrenomes. Em poucas horas, a família "Sou Foda" já era mais numerosa que a "da Silva" nas estatísticas do Facebook. Os editores da rede social trataram de impedir que os usuários continuassem usando esse nome, afinal de contas, era palavrão. Houve protestos. Uma fan page "Sou Foda, mas o Facebook não é" foi criada, curtida por milhares e rapidamente tirada do ar. A censura só aumentou o movimento.

A presidente da ONG achou que o acontecido não podia passar em branco. Rapidamente, promoveu uma passeata na Nossa Senhora de Copacabana. Grandes dedões em sinal de positivo verde-e-amarelos foram distribuídos. O kit, vendido a R$ 25, incluía a camisa com reprodução do grafite "Sou Foda". Os manifestantes entoaram canções de paz e fizeram um minuto de silêncio em um grande círculo, na praia.

Os telejornais mostraram detalhes da obra de Calderón, e o artista só não ganhou um Globo Repórter porque isso evidenciaria uma violência indesejada na cidade olímpica. A comoção era geral.

Sentado em seu sofá na Taquara, Calderón assistia a suas homenagens póstumas.

De primeiro, pensou em esclarecer o mal entendido rapidamente, e mostrar que estava vivo, bem vivo, e bem mais gordo que o defunto da foto. Quando discava para a polícia, viu mais uma chamada na TV com fãs emocionados, e resolveu desligar. Trancou a porta, desligou os telefones, ligou o computador, a TV e o rádio, e passou a semana toda emocionado. Não tinha dinheiro para pagar o aluguel do mês passado, porque não ganhava um tostão com sua arte, mas estava sendo finalmente reconhecido. Se soubesse que valia tão mais morto do que vivo, teria se matado há muito mais tempo, na primeira vez em que pensou nisso seriamente. Deliciou-se com suas homenagens póstumas. De sua vasta lista de grafites pelos muros do país, aquele sob o qual morrera não fazia parte da sua coleção, tinha certeza. Mesmo assim, recostado no sofá, vendo o Domingo Espetacular lhe render uma justa homenagem, ele murmurou:

"É... sou foda."

domingo, 6 de janeiro de 2013

Passado

Soltou a mão da mãe e correu para a entrada do museu. Nem imaginava que o grande pórtico em formato de 'M' tinha significados tão diversos para aquela estranha e distante cultura.

"Luzia, volte para cá! Não está vendo o homem? Vai pegar você!"

Luzia voltou-se assustada para o tal homem. Era grande, bem maior do que ela, as mãos segurando ferramentas que ela desconhecia. O rosto não parecia tão assustador, sabia que não era de verdade, mas por via das dúvidas, voltou para perto da mãe.

"O que aquele homem está fazendo, mãe?"

A mãe leu na placa indicativa "homem lavando louça". Não sabia bem o que aquilo significava, mas não podia deixar a filha em dúvida. Como todas as mães fazem de vez em quando, improvisou sem pensar muito.

"Ele está separando potes para a caça, filha."

Seguiram. Luzia se esticava na ponta dos pés para ver os conjuntos de potes. Não sabia porque todos os museus exibiam tantos potes. As pessoas antigamente deviam gostar muito de potes. Eram coloridos, transparentes, retangulares e redondos. Gostava dos que tinham tampa. A explicação ao lado da coleção era grande demais para a leitora recém alfabetizada, que resolveu soletrar apenas as letras da lateral de um dos recipientes: "TU-PPER-WARE".

Não tinha ideia do que significava aquela palavra, mas isso não importava muito. Não entendia grande parte das coisas que via em museus, mas achava interessante mesmo assim. Ao contrário das outras crianças, que corriam por entre os expositores sem se importar muito com o passado, Luzia tinha a sensação de que devia respeitar todo aquele arsenal de coisas velhas ali expostas. Era como conversar com o vovô: mesmo não entendendo muito do que dizia, sabia que devia ouvir e aguardar até que terminasse de falar. Havia uma conexão entre Luzia e aquelas coisas, que ela não sabia explicar.

Subiu as escadas e chegou a um grande salão com itens que não reconheceu. Leu sobre o portal "MÁ-QUI-NAS". O que era aquilo, afinal?

Letras enfileiradas em cubinhos, presas em um aparelho que não conhecia. Ao lado, um outro artefato ainda mais curioso, muito liso. Leu novamente com seu alfabeto pré-aprendido: "S-A-M-S-U-N-G".

"Mamãe, o que é isso, Samizugue?"

A mãe gostava de distribuir cultura à filha, mas ficava incomodada com essas perguntas. Para as crianças, os pais sabem as respostas. Mas para aquela questão, nem grandes especialistas estavam certos em torno de uma única resposta. Uns diziam ser uma inscrição indicativa de algum ritual, outros acreditavam que seria uma espécie de título dado a cavaleiros, após passar pelos testes da Tecnologia. Este era, aliás, tema que dividia os arqueólogos e cientistas: enquanto uns acreditavam que o deus Apple havia reinado na Era da Tecnologia, levando seus súditos a carregar o símbolo em formato de maçã no bolso, outros achavam que isso não passava de um amuleto de boa sorte. O que se sabia apenas é que homens de várias raças e aparências, cujas ossadas foram encontradas por todo o planeta, carregavam as inscrições da maçã e da SAMSUNG consigo, indicando que estes eram artefatos de grande importância. Havia os portáteis, e os de grande porte.

Vários desses exemplares estavam na frente da pequena Luzia, que indagava a mãe sobre aquela massa de aparelhos pretos e brancos, que ela desconhecia. E a mãe precisava de uma boa resposta.

"É o nome de um grande governante, Luzia. Pai daquele cara ali."

Luzia mirou o "cara ali". Era uma estátua de cabelos desgrenhados, um paletó como o de tantos outros e, curiosamente, o personagem trazia a língua de fora. O pai observava a placa que explicava quem era aquele homem curioso. Ela chegou perto do pai e viu como ele era bem menor do que a estátua. Mas ela admirava muito o pai. Ele nunca voltava de mãos vazias da caça, e além da comida sempre trazia uma flor para Luzia. A menina gostava muito das flores, porque elas coloriam seu quarto cinza, e ela não tinha muito o que fazer depois que ajudava a mãe na horta, a não ser olhar suas plantas.

Luzia se aproximou do pai, e pediu para que lesse o que dizia a placa. Ele apertou os olhos e tentou não demonstrar à filha o cansaço de seus olhos e a pouca prática com a leitura. Leu de uma só vez o que dizia a placa:

"Não sei como será a Terceira Guerra Mundial, mas poderei vos dizer como será a Quarta: com paus e pedras".