sábado, 27 de setembro de 2014

Salve Cosme e Damião!

Bando de molequinhos andando apressados na calçada, sinal de alerta carioca ligado: pivetes mirando meu cordão, que já não uso por ser alvo fácil?
 
Passam por mim e nem ligam. Correm para um carro na beira da calçada. "Tem doce, tia? Tem doce, tio?"
 
Viva São Cosme, viva São Damião!
 
Santos com o poder de transformar crianças de rua em crianças na rua, misturadas a todas as outras crianças que não foram impedidas pelo medo, religião ou ignorância dos pais, e estiveram nas calçadas correndo atrás de doce de abóbora, maria-mole, pé-de-moleque e toda a sorte de doces muito muito doces que só existem nessa época do ano.
 
Salve São Damião, salve São Cosme!
 
Que uniram famílias durante essa semana, para montar os saquinhos distribuídos hoje pelas ruas. Deus proteja o carinho e a união da linha de montagem dos doces mais tradicionais da paróquia.
 
Viva Cosme, Damião e "Doum"!
 
Que me fazem lembrar minha avó Elza, a grande entusiasta dos docinhos dessa data, que fazia questão de ser criança na semana depois do seu aniversário, e reclamava se não lhe levassem um saquinho de Cosme e Damião. Ah, vó, que saudade.
 
Salve Cosme, salve Damião!
 
Esses meninos que transcenderam a religião para marcar a cultura de um povo, o verdadeiro folclore de uma gente que gosta de doce com muito açúcar, porque marshmallow nunca chegará aos pés de uma boa maria-mole, ou dos inocentes, safados e inter-raciais peitinho de moça e peitinho de nega.
 
Viva o dia de São Cosme e Damião! Viva!

domingo, 31 de agosto de 2014

Divagações de timeline


Falta tema, sobra preocupação, falta tempo, sobra impaciência, falta destreza, sobra inércia, falta iniciativa, sobra trabalho, falta organização, sobra nada do que possa faltar para que o texto escorra em letras que encham os olhos. Mas às vezes transborda.

Transbordou.

A pena e o tinteiro já não são privilégios de quem se esforçou para possuí-los. Escrever não se restringe aos que encararam o desafio de dominar as letras. Numa brincadeira de dominação e dominado, pensadores do Novo Milênio se aproveitam do nanquim digital para borrar o branco com sua opinião imediata, revirando os sete palmos daqueles que um dia acreditaram na força das palavras.


Cruz e Souza era filho de escravos, em uma família cercada pela tragédia. Aprendi sobre ele em um museu. Virou poeta, considerado o mais importante do Simbolismo brasileiro. Procure por "poeta negro" no Google. Ele é o primeiro da lista, mesmo morrendo aos 36 anos, no ano de 1898. Apesar da vida curta e sofrida, ele conseguiu dominar a sociedade, depois dominou a si mesmo, depois dominou a língua, até deixar seu legado para todo o sempre.

Hoje ninguém quer ser Cruz e Souza. Desde 1898, ninguém conseguiu tirar o cara do topo da lista do Google. Porque saber escrever caiu em desuso. Porque respeitar a retina alheia é démodé. Porque argumento é coisa do passado. O importante é falar, mesmo sem nada a dizer. É a democracia-do-enquanto-concordarem-comigo. É parar de ter vergonha e passar a ter orgulho de achincalhar a si próprio, à própria família, ao próprio país. É por o filho no curso de inglês, sabendo que ele não escreve duas frases corretas na própria língua.

Por que xingar de macaco é pior do que de filho da puta? Seria pior parecer um símio que ter a mãe na zona? Se o cara fosse grandão e a dona xingasse ele de girafa, a turba furiosa teria apedrejado sua casa?

Houve tempo em que eu debatia política. Argumentava, tentava convencer de acordo com o que me parecia mais correto. Até descobrir que ninguém estava muito interessado nisso. O negócio é o clima de Fla Flu, é descontar toda a raiva em quem der a cara a tapa, dizer que acredita só para depois poder dizer, comovido, que está decepcionado. Apoiar só até a página dois, para não ficar mal na fita. Rir de quem foi manipulado para aparecer na TV sem nenhum preparo, só para acrescentar voto de legenda.

Quero Chico, quero Vinícius, quero teatro, quero viagem. Quero quem complete, quem acrescente, corrija, quem faça rir numa madrugada de hora extra. Quero caipirinha e catuperoni. Quero conversar com o videogame, e me admirar com a tecnologia enquanto danço. Quero quem responda preconceito com competência, não com mimimi. Quem tiver, aprochegue-se. Caso contrário, por favor, distancie-se da minha timeline.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Só falta o Asteroide

Era fim de 2012. A equipe já não via a luz do dia havia dias, trancafiada naquele escritório etéreo. Trabalhavam até dormir sobre os papéis do projeto, debruçados nas linhas de código. O prazo estava apertado. Não ia dar, era loucura.

Quando prometeram aos Maias, parecia que era muito tempo. "Milhares de anos" era um período bem razoável para acabar com tudo. À época do contrato - ou da "previsão", como o marketing aprovou -, as pessoas achavam que nunca ia acontecer. Mas a máxima de que, se você marcou uma data, um dia ela vai chegar, estava mais uma vez concretizada.

Chegou, e chegou rápido. Muito mais rápido do que a velocidade das entregas da equipe. Um tsunami ali, uma praga acolá, algumas etapas do projeto até estavam concluídas, mas o todo estava longe de ficar pronto. Acabar com tudo assim, numa data só, preocupava os gerentes de projeto. A sobrecarga poderia ser grande demais, os continentes podiam se desmanchar mais do que o previsto, a Dercy podia não morrer, sei lá, muitas variáveis, diziam aos diretores.

Mas a data estava marcada. O anúncio estava pronto, tinha que ser feito. Prazo e orçamento estavam estourados: já tinham perdido as datas de Nostradamus e da Mãe Dinah, dos Maias não podia passar. As previsões já estavam ficando sem credibilidade, os ateus quase virando maioria. Questões políticas pressionavam a equipe.

Resolveram liberar uma fase de catástrofes junto com uma primeira leva de imortais. Desligaram Dercy, Hebe, Niemeyer. A máquina frio-calor já estava funcionando, e era orgulho dos engenheiros. Na madrugada em que encontraram um meio de reduzir ainda mais o nível da novela das 9, saíram pra beber: pessoas se torturando e se comendo no horário nobre era um marco importante para o fim do mundo.

Duas semanas de desenvolvimento para migrar totalmente a base da Dignidade para os dois novos servidores, Meus-Direito e Populismo. Enchente, tufão, furacão, acidentes em larga escala já eram rotina consagrada desde a primeira tentativa de acabar com tudo, durante a Campanha "de Mil Passastes, de Dois Mil não Passarás", na virada do milênio. Não foi difícil intensificar.

Criar o clima de fim do mundo não era tarefa tão complicada. Puseram pichadores nas partes mais bonitas do planeta. Encheram de assaltantes, pedófilos, assassinos. Requinte de crueldade, no desenvolvedor que criou o cara-que-arranca-os-itinerários-dos-pontos-dos-ônibus-sem-nenhum-motivo. Pura maldade. Sinal dos tempos.

Essa era a parte fácil. O que preocupava mesmo era o Grande Asteroide. Deixaram pro final, devido a complexidade e ao alto custo do módulo. Até ficar tarde demais, ao descobrirem que os especialistas em asteroides daquele porte não estavam mais nesse pós-vida para treinar a equipe. Tentaram improvisar, um brasileiro sugeriu um aerolito. "Nunca viram Chapolin?", reclamou, quando multiplicaram os olhares surpresos dos membros de outros países.

Tentaram de tudo. Foram guerras, bombas nucleares, qualquer coisa que provocasse a autodestruição sem a necessidade do Asteroide. Nada. "Mundinho esse pra sobreviver, praga!", esbravejou um supervisor.

Até que o dia chegou. A expectativa era grande, os anúncios estavam espalhados por todas as partes, pessoas escondidas em suas casas, esse era o momento. Milhares assistiam ao tão esperado instante do fim do mundo, no pós-mundo. Não havia salvação, estava acabado, destroçado, era hora de por uma pedra - uma imensa pedra - sobre o planeta.

Só que houve uma mudança de planos. O Fim do Mundo foi lançado, com fogos, festa e tudo o mais, as pós-pessoas aplaudiram, a equipe estourou a champagne. O que quase ninguém notou é que o Grande Asteroide foi adiado, para uma próxima versão do projeto.

Criaram uma contingência, levando as pessoas necessárias sob demanda. Os últimos foram o Nelson Ned e o Mandela. Ligaram a máquina do frio-calor na última potência, pra ver se alguém resistia. Por enquanto estão resistindo. Prometeram que o asteroide está quase pronto, mas que talvez seja desnecessário, já que sob vários indicadores, o mundo já acabou, mesmo.

Só falta o asteroide.