quarta-feira, 3 de junho de 2015

Prótese do antigo milênio

Antigo, porque de novo ele não tem nada, ao completar seus avançados quinze anos (ou quatorze, se alguém ainda se lembrar da polêmica do terceiro milênio, que não começava em 2000, mas em 2001).

Em quinze anos de ex-novo milênio, passamos do discado (wóooow tshhhhhh, péin péin péin) ao wifi-4g-móvel-como-assim-você-só-tem-cinco-mega. Estamos conectados em (quase) todos os cantos, e quando não estamos, dá urticária, palpitação e aquela sensação de "mas e se acontecer alguma coisa, como é que eu vou saber?". A essa pergunta, só o que sei dizer é que, até o milênio passado, as pessoas ficavam sabendo. Deixavam recado, ligavam pro trabalho, mandavam pombos, sei lá, mas o recado era dado e, de uma forma ou de outra, todos ficavam sabendo do que lhes era devido.

O milênio, novinho, começou a engatinhar e em suas primeiras palavras estava a segunda leva da internet, a participativa. Antes, existia o jornalista, o colunista, o provedor de conteúdo e o leitor. E o milênio experimentou ainda em sua infância uma mistura assanhada de todos esses papéis, em que todos falam e ninguém escuta, todos escutam o que ninguém fala, ninguém fala o que se escuta, entre muitas outras combinações curiosas e perversas do mundo digital. De toda essa promiscuidade participativa, veio o termo "rede social", e com ele a mais nova prótese da sociedade.

O carro grande, a roupa de marca, a mulher mais nova, "próteses" utilizadas há muito pela sociedade moderna para esconder ou substituir membros defeituosos - incluindo o cérebro, a dignidade e a honra. Ontem, porém, verificando a timeline do Facebook pela enésima vez ao dia, me dei conta de que as tais "redes sociais" estão servindo como próteses. Próteses de vida.

Acontece que ontem foi um dia em que nada aconteceu. Dormi muito, vivi pouco. E depois de muitas semanas sem necessidade de ler a vida alheia no Facebook, no Instagram, no Twitter, ontem o fiz várias vezes. Acessei incessantemente, até descobrir que estava tentando sugar um pouco de convivência falsa, de conversa, de vida, de cumplicidade.

Que bosta, pensei.

E vi como isso vicia. Como é bom viver a vida alheia, acreditando que estamos convivendo com aquela pessoa que nem lembra seu nome. Como é bom desenhar a vida que gostaríamos de ter em algumas frases, memes e fotos pseudo-espontâneas. Como é bom saber de tudo sem se expor, sem sair de casa, sem abrir a boca, sem abrir o guarda-chuva para chegar na casa do vizinho. Sem nem discar o telefone, porque o primeiro alô já é uma iniciativa direta demais.

Que prótese maravilhosa essa, a que substitui uma vida vazia, inerte e inócua, por outra cheia de amigos, de atividades, de opiniões, de eventos, de issos e aquilos!

Mas... a que custo? De mentira também vale? Se fôssemos nós no lugar do personagem de Keanu Reeves, tomaríamos mesmo a pílula vermelha? Quereríamos sair do mundo das opiniões intermináveis sobre qualquer coisa, das frases de autoajuda emolduradas por famílias felizes, dos bom dia e boa noite encaminhados ao vento, das fotos muito felizes de momentos nem tão felizes, das notícias ruins do vizinho que ainda não são minhas, dos destinatários sem remetente, dos remetentes de qualquer destinatário, da fila de pessoas desconhecidas que concordam comigo, da chance de bloquear quem eu não quero ouvir, de..., de...?

Talvez haja um equilíbrio. Uma terceira pílula, de repente. Que permita ao caboclo utilizar o meio de comunicação, sem entregar a ele um naco de vida. Talvez seja aplicável apenas a outras espécies mais evoluídas. Ou aos moradores do próximo milênio. Não sei. Ando pessimista.

Vou tomar minha pílula azul, postar essa crônica e aguardar. Quem sabe me alimento com alguns likes, nessa noite solitária.