quarta-feira, 8 de julho de 2015

Do que sou - ou Uma Carta para Minha Avó

Ah, vó. Há quanto tempo eu não lhe escrevia! Já faz mais de dois anos que você foi embora... e muitos desde a última carta que lhe mandei.

Mentira. Você não foi embora. Está aqui. Bem pertinho.

Fui arrumar suas coisas esse fim de semana. Estamos tirando tudo dos armários - nossa, quantos armários -, para a mudança do meu avô pra Terê. Sim, do jeito que você dizia que ele devia fazer quando você fosse embora. Demorou um pouco, sabe como são essas coisas de dia a dia. Mas depois daquele susto, bem no segundo aniversário da sua partida, quando você me sussurrou que meu avô ia precisar de ajuda naquela noite - ah, que noite longa -, estamos recuperando o tempo perdido.

Fiquei encarregada de arrumar o quarto do Julio. Ou o meu quarto. Ou o quarto do computador. Ou o quarto da mesa do meu avô. Ou o quarto do som. Ou o quarto do bar. Ou o quarto do Luiz Carlos. Ah, quantos quartos dentro de um só cômodo, cheio de família nesses trinta e tantos anos de Praia da Bica! Apesar de não abrir nenhum armário por lá há mais de dois anos, vó, tudo o que tinha lá ainda era seu. Duas ou três pastas de documentos do meu avô, nada mais. Todo o resto era você, em muitos pedacinhos.

Encontrei um caderno de contos sobre o que seria o amor. Escrito por você e por suas amigas de escola, em 1949. Acho que foi você quem teve a ideia de escrever, porque é sua a primeira crônica sobre o amor. Talvez ainda não conhecesse meu avô, e a ideia de amor ainda fosse mais romântica e delicada do que a vivida em 57 anos de casamento. Mas não menos dedicada e completa. Sabe vó, um naco grande do meu avô não vivia dentro dele, e foi embora junto com você. Nem o coração de não demonstrar sentimento dele resistiu, quando três meses depois da sua despedida, o infarto quase o levou junto. Mas sabe como é meu avô: o seu inventário ainda não estava pronto, então ele tratou de se recuperar logo pra resolver esse problema.

Peguei uns CDs seus para mim, tá? As pessoas quase nem dão mais valor, mas eu gosto. Peguei os do Chico, e Canção do Amor Demais também. Não tenho vitrola, mas também guardei o LP do "Prá Gente Miúda", que dançamos tantos sábados! "Lá vem o pato, pato aqui, pato acolá, quá quá...". Eu não tinha ideia de que tantos nomes importantes do cancioneiro popular faziam parte daquelas nossas tardes de sábado, enquanto a gente contava o passo com a bailarina, ou desenhava numa folha qualquer com a Aquarela. O LP foi comprado em 29/09/1988, você anotou na capa. Eu tinha pouco mais de dois anos, quando você começou a me mostrar que Chico Buarque seria meu compositor favorito.

Falando em folha qualquer, vó, eu tive que me desfazer dos seus blocos de desenho, e dei para a doação as nossas réguas com formatos geométricos. Eu sei que você nunca chorava, mas eu chorei por nós duas, quando tirei da gaveta as minhas cartas de Teresópolis para você, e a impressão do Power Point do "Notícias da Serra". Estava junto com o "Aviso de aniversariante" que eu colei no seu andador, e que você exibiu orgulhosa o dia todo, em um dos últimos aniversários em que passamos juntas. Chorei e choro de novo agora, porque essa mania de chorar eu herdei da outra vó.

Aquela porta do armário que tinha centenas de livros, revistas e cadernos empilhados era a que mais me preocupava, e foi a que me deu mais trabalho. Porque você estava distribuída em todas as páginas. Em todas as pastas de letras de música do Coral (com o codinome Elza II, porque tinha uma outra Elza no coral do Iate); nas suas anotações do curso de japonês (o Aquino, que você não chegou a conhecer mas teria se dado muito bem, trouxe o livro e o dicionário pra ele); nos mais de 20 anos de Almanaque do Pensamento; nas revistinhas mil de horóscopo; no seu mapa astral; nos livros de primeiros socorros; nos livros de psicologia, biologia, ortografia, gramática, tarô, do-in, terapia, autoajuda, filosofia, Jorge Amado, Vinicius de Moraes... Nas anotações e nos marcadores de livro, nas flores secas entre as páginas, lá estava sua busca louca pelo conhecimento de qualquer coisa que despertasse o interesse. Separei a maior parte para o sebo, mas trouxe algumas bolsas para casa.

Desculpe o mau jeito ao desconstruir seus maiores tesouros. Doeu aqui, porque eu sei que lhe doeu também.

Não se preocupe. Está guardada aqui entre as minhas veias essa vontade de me interessar por qualquer coisa que desperte interesse, de escrever, atuar e ser programadora ao mesmo tempo, de não ter medo de estudar matemática e gostar de samba. Pode deixar. A sua biblioteca audiovisual será mantida e ampliada. E os livros que estavam tanto tempo sem ser lidos vão para novas mãos, para nova gente interessada. Lugar de livro é na cabeceira de leitor, não trancafiado em um armário de memórias.

Deu trabalho, o seu tesouro. Cansa revistar tudo aquilo, viu. Mas valeu a pena, fazia tempo que não ficávamos juntas assim. Como nas tardes de sábado.

Peguei o LP do "Prá Gente Miúda" e ouvi as músicas, no computador, como se fosse a vitrola. Chorei de novo. Essa coisa de chorar é da minha outra avó, você sabe. Entre muitas outras coisas, como o gosto por Agatha Christie, mas isso não vem ao caso agora, depois eu escrevo para ela também. Essa coisa de saudade machuca, dói mesmo, por isso a gente chora. Mas a vida é assim, e como você escreveu em várias agendas e cadernos no fim da sua passagem pela Terra, "O importante não é o que fizeram de nós, mas o que faremos com o que fizeram de nós".

Pois é, vó. Chorei de novo.

E mais ainda, quando Chico Buarque cantou os últimos versos do nosso LP na vitrola:

"Só peço a você, um favor, se puder... Não me esqueça num canto qualquer..."