sexta-feira, 10 de abril de 2020

Do café, do Buda e da minha avó em uma Sexta-feira Santa de quarentena



15º dia sem passar da porta, seguimos. É sexta-feira da Paixão, a primeira da minha existência longe dos meus pais, do peixe frito e do molho de camarão deles. Deu saudade até daquele filme imenso que a gente assiste todo ano, fica triste, mas sabe que O Protagonista ressuscita no final.

Coo o café, observando que o açúcar acabou. Come-se mais açúcar na quarentena, aparentemente.

Lembro que minha avó faria aniversário no domingo de Páscoa, se ainda estivesse conosco. Sentimentos opostos me fizeram salgar o café com algumas lágrimas. Merda, logo quando o açúcar acabou.

Saudade e alívio.

Minha avó adorava que comemorássemos o aniversário com ela. Imagine a festa caindo no domingo de Páscoa! Certamente pediria para minha mãe caprichar no salaminho e no queijo provolone. Ah, saudade.

Mas ela era também a pessoa mais bem informada da família, e estaria agora fazendo quarentena, colocando água sanitária no pé da porta, usando máscara, lavando as mãos, recitando as orientações da OMS, ligando todo dia pra gente não sair de casa, e xingando muito o Bolsonaro a cada pronunciamento. Certeza. Seria a primeira a cancelar a comemoração, e sofrer com a gente esse exílio, guardando sua idade, hipertensão e diabetes em casa com todo cuidado.

Alívio por você estar comemorando no céu, vó, onde não tem vírus, não tem Páscoa com a gente longe, não tem grupo de risco.

Dor e Fé.

Li ontem à noite (Sapiens é minha atual leitura de quarentena, recomendo) que Buda percebeu que o problema da humanidade não estava na dor ou no revés, mas sim no sofrimento.

Nos momentos ruins, sofremos para que acabe, e nos momentos bons, também não estamos em paz porque sofremos para que ele perdure. Buda buscou acabar com esse sofrimento, sentindo a dor mas eliminando o desejo de que ela acabasse; sentindo a alegria mas eliminando o desejo de que ela perdurasse. Quando chegou nesse objetivo, atingiu o tal do Nirvana, virou de fato o Buda e foi transmitir esse processo para outras pessoas.

(momento em que eu peço perdão a algum eventual budista que tenha lido essa explicação, possivelmente pobre, possivelmente errada. De qualquer forma, fez sentido para meu raciocínio pré-cafeína.)

Do budismo voltei para a minha avó. Rezava seu terço pela manhã e à noite, sempre colocando todas as intenções que achasse conveniente em suas orações. Não raramente eu terceirizava minha fé: se alguém estivesse precisando de ajuda, eu pedia que ela incluísse nas orações do terço dela. Sempre funcionou. Todos os momentos importantes até ela partir, eu tinha uma certa segurança de que tudo ia dar certo, porque ela sempre reforçava que tinha rezado por mim.

Mas ela era também de um sincretismo religioso ímpar: o fato de ter raízes no espiritismo nunca fez com que deixasse de rezar seu terço; lembro de uma vez que pegou uma água abençoada na Igreja Universal: "pessoal é safado mas se a água é abençoada, eu vou deixar de pegar?"

Aí lembrei do Buda, da sexta-feira Santa, da minha avó, e tudo fez sentido num sincretismo matinal. Estar distante da família na Páscoa dói. Não ter mais as orações da minha avó dói. Estar presa dentro de casa sem poder ir na esquina e não ter ideia de quando isso acaba dói, e não tem o que fazer a não ser deixar doer. Sentir a dor. E ver que ela é só mais uma sensação, e que ao não ser repelida, vira lembrança, vira saudade, mas pode não virar sofrimento.

Eu li também que 90% dos budistas não consegue atingir o Nirvana. Ou seja, estatisticamente, essa tentativa de não sofrer vai dar errado. Complicada essa coisa de misturar exatas com humanas. Mas esses somos nós, sobrevivendo para contrariar as estatísticas do caos.

Manhã e noite.

Tive essas ideias antes do café. Lembrei delas durante o já tradicional panelaço das 20 horas, enquanto pensava que daqui uns 30 anos, quando forem fazer filmes da nossa época, vão começar numa tomada das janelas, com uma galera antiquada maluca cantando, batendo palma, panela e tambor.

"Que forma louca de sermos lembrados", pensei. E uma vez mais, lembrei da minha avó, que contava da infância na Praça XI durante a Segunda Guerra.

Como nas estações da Paixão, chorei pela segunda vez.

E resolvi por no papel - 'no papel', da série expressões antiquadas - essas divagações. Não tenho filhos, provavelmente não terei netos para lembrar do que eu fazia ou dizia em uma próxima Era. Mas em algum arquivo morto de um blog esquecido dos idos anos 20, lá estarei eu para dar minha visão dessa história.

E se hoje passamos por essa sexta-feira Santa prolongada por dias, e semanas, e meses, seguimos na esperança de que ressuscitaremos nossas vidas em um belo domingo de Páscoa.

Que assim seja!