sábado, 15 de setembro de 2012

Quando as Luzes se Apagam


Letreiros. Algazarra. Ao fundo, a voz conhecida de um desconhecido ator de novela. Em meio a guarda-chuvas apressados e furiosos faróis de neblina, apenas uma pequena estrela, em meio às pesadas nuvens, parece saber que é noite. Amigos conversam ruidosamente sobre o último lançamento tecnológico. 

Do outro lado da rua, enquanto letreiros luminosos anunciam o próximo show da boate, um casal preocupa-se com a hora: é hora de despedida. O dono do bar conta o faturamento do dia, pensando que o crediário da TV LCD não poderá ser pago. Mentes se irritam, bocas trabalham, olhos percorrem o cenário em busca de mais e mais informação.

De repente, sem aviso, escuro total.

Por um momento, o vento e uma manutenção mal-feita fizeram tudo parar. Não há música. Não há letreiros. Não há nenhum acidente trágico na tela da televisão. O único ruído que se tem vem da boca daqueles que construíram todo aquele aparato: os homens. Aos poucos, enquanto as retinas se habituam com a situação inesperada, as mentes se acostumam com a ideia de conviver com um mundo que não lhes pertence.

Velas. Após o torpor inicial, surge o instinto de fazer fogo, de criar luz. Aos poucos, pequenas chamas surgem nos balcões, por entre as frestas das janelas, em cada canto. A imagem fraca e insegura que se forma em torno do atendente da padaria da esquina é irreal, e faz com que o pedestre preste atenção em cada ruga de sua cansada face.

No bar, os amigos se calam. Sem saber porquê, aquele assunto sobre o novo computador biológico deixou de ser tão interessante. O casal, sem perceber, está abraçado, reconhecendo aos poucos o novo terreno. Não se escuta, através das janelas entreabertas, o ruidoso tormento televisivo. Nenhuma voz metálica diz a todos o que fazer. Que fazer?

A hora parece não passar. Os carros que cortam o cruzamento principal já não parecem tão furiosos. Cortam a escuridão misteriosamente, e misteriosamente somem. Como que encantados, os jovens amigos são convidados pelo som das ondas a contemplar a praia. O dono do crediário já nem encontra significado para a palavra “vídeo-cassete”, de olhos fechados, ouvindo o vento açoitar as palmeiras. Nessa violência pacífica da natureza, também está embalado o casal, não mais apaixonado, agora enamorado.

Ele pega a mão da moça, como se nunca a tivesse sentido. Corre-lhe pela espinha uma sensação peculiarmente nova. Misturam-se ansiedade e medo, prazer e descoberta, em um gesto tão singelo.  Se não fosse a escuridão, ela poderia ver os olhos dele brilhando, pouco antes do beijo. Aquele, que foi o primeiro, mesmo com tantos outros antes.

Ao lado da padaria, vê-se uma cortina verde, semi-transparente, balançando. Atrás dela, uma senhora borda o enxoval de sua neta, à luz de um lampião. A seus pés está uma menina, de vestidinho branco e laçarote rosa-bebê. Brinca com sua boneca de pano, caprichosamente costurada, feita especialmente para ela.

A cortina balança com mais intensidade. A chama da vela parece mais fantasmagórica, na padaria ao lado. O português, já terminado o serviço, observa a senhorita que atravessa a rua. Preocupada em não molhar as saias rendadas do vestido, anda nas pontas dos pés. Um jovem, de botas e cuidado bigode, gentilmente pára sua charrete para que a jovem suba. Os cavalos parecem não se importar com a chuva.

O casal faz planos para o futuro. Uma casa grande, muitos filhos, muitas alegrias. O rapaz quer um menino. Ela, uma menina. Sonhos de um futuro já passado.

Em um canto, solitário, está a pena do escritor, riscando o papel ferozmente. A tudo observa, tudo transcreve com habilidade de mestre. O pergaminho sempre insuficiente: tão pouco espaço para descrever o que via... A estrela sobrevivente às nuvens; as piruetas revoltas do mar ao fundo; o farol, como guia para os frágeis navegantes; o casal, de mãos dadas, à beira da marquise – sapatos cheios de lama, olhares cheios de quimeras; o padeiro, de olhar longe, lembrando das terras além-mar e dos campos da infância; a rua de terra, enlameada, disforme por causa das pesadas rodas de carroça – e dos bravos cavalos; a criança e sua boneca, a avó e seu bordado; a luz estonteante das velas e dos lampiões... Tudo está ali, novamente ali, nas retinas e no nanquim do poeta...

De repente, o clarão. Os técnicos conseguiram. Os olhos se fecham furiosamente, assustados com o brilho inesperado. A música volta a tocar. O letreiro da boate vibra. O mar já não é tão interessante. Qual era mesmo o nome do novo chip?

A moça olha a hora. É hora de ir! Diz que o pai dela a quer de volta em casa, mas o que realmente a chama é a novela das 9. Um beijo de despedida, ousadamente frio. Ele pensa em passar na casa da vizinha solitária.

A padaria fecha, amanhã cedo é mais um dia de trabalho.

O dono do bar passa um pano no balcão.

O escritor se desespera, ao olhar sua caneta esferográfica riscar o caderno de capa dura. As luzes se acenderam. O sonho se apagou.