domingo, 13 de janeiro de 2013

Homenagem Póstuma

Daí que o cara morreu.


Apareceu morto em frente a um muro, grafitado com a seguinte inscrição: "Sou Foda". Como era domingo e a rua do centro onde jazia ficava deserta nos fins de semana, levou algumas horas até que um gringo perdido encontrou o corpo. Em choque, o alemão desviou do pivete que ia assaltá-lo e correu até um fiscal de ônibus, que cochilava no ponto final. Depois de alguns entendimentos em inglês luso-germânico, a polícia foi acionada. Como ainda arfava depois de duas horas, quando a viatura chegou, os policiais arrumaram uma água-com-açúcar para o gringo no boteco, enquanto o fiscal comprou um saco de pipocas e voltou a dormitar.


Chegaram ao local. O defunto estava lá, com sua cara de morto, e em nada seria diferente de tantos outros defuntos, não fosse o polegar direito voltado pra cima, em sinal de positivo. Reparando o joinha e a inscrição no muro, o PM que saltou da viatura sentenciou: "Esse cara é foda, hein?"

Antes que o outro policial proferisse uma segunda observação técnica, um Palio meio torto parou ao lado da viatura. Uma moça pequena com uma máquina fotográfica grande saltou do carro, e começou a ajustar o foco. O policial perguntou quem era ela, e de onde diabos tinha saído. Ela disse que era repórter de um blog, que passou pelo gringo arfante no ponto final do ônibus, e que tinha acordado o fiscal para que lhe contasse toda a história. E ali estava, fotografando o corpo do artista.

"Do artista? O presunto é artista?", perguntou o cabo Fragoso.

A repórter disse que devia ser o autor do grafite no muro. E que deveria ter morrido após uma disputa territorial, ou uma confusão por direitos autorais, ou mesmo um desentendimento com a sogra. De qualquer forma, depois que descobrissem quem era o artista, daria uma boa matéria. O policial ponderou as hipóteses, num muxoxo. Decidiu que a moça não era relevante, assim como o motivo pelo qual o morto havia morrido. Não era da conta dele. Deixou que a jovem fizesse as fotos, antes de continuar com o procedimento padrão.

Juliana aproveitou todos os ângulos possíveis, não podia perder aquele momento. Gostava de fotografar estátuas de cemitérios, mas essa era a primeira vez que estava frente a frente com um morto ainda não enterrado. Quando foi para casa, pensava no sucesso que seria a foto focada no dedão estendido do defunto, com a grande inscrição "Sou Foda" como pano de fundo. Os dez seguidores de seu blog certamente iriam curtir, e talvez ela conseguisse finalmente a aprovação do namorado, de que era uma boa fotógrafa.

A foto havia ficado realmente um espetáculo. Juliana nem precisou de muitos filtros para deixá-la perfeita. Ao criar a postagem no blog, porém, surgiu uma dúvida: como descreveria aquela cena?

Procurou no Google alguma referência ao grafite no muro. Depois de muito tempo - quase quinze minutos, uma eternidade para quem busca informação na Internet - encontrou uma foto de um grafite bem parecido, com o artista criador na frente. E, para felicidade de Juliana, o grafiteiro posava fazendo sinal de positivo. Era ele. Só podia ser ele. Joinha.

E assim ela postou sua homenagem póstuma a Calderón, o grafiteiro que aparecera misteriosamente morto sob sua obra. De sua alegria, restou apenas o sinal de positivo, demonstrando que o instinto de ver a vida positivamente pode vencer até a morte. Juliana ficou orgulhosa de sua última frase, e quase ficou verdadeiramente emocionada com a perda.

Acontece que aquele dia estava ruim de matérias. E o editor do grande jornal precisava encontrar algo mais interessante do que a bunda da BBB, que tinha aparecido enquanto ela trocava de roupa. "Como se não aparecesse no resto do tempo", pensou quando aprovou a manchete. O editor queria sugerir que só chamassem novas BBBs com tatuagens na bunda, para ficar mais fácil de diferenciar uma da outra e criar a legenda da matéria. Mas a vida era assim, se não choveu o suficiente pra dar tragédia, contenta-se com BBB na capa. Agora pesquisava uns blogs desconhecidos, em busca de um fotógrafo mais talentoso. Foi quando se deparou com um post emocionado de uma fotógrafa iniciante.

"Putz, o Calderón morreu! Talita, chegae, achamos matéria!"

A bunda da BBB foi rapidamente substituída pelo obituário de Calderón. Uma pequena comoção tomou conta da editoria, mesmo que ninguém soubesse, no íntimo, quem era aquele cara. Por trás do rosto de pesar, os repórteres rapidamente jogaram o nome do grafiteiro no Google, para descobrir quem diabos era o artista. A busca por imagens trazia mensagens de protesto em muros alheios, e rapidamente toda a equipe da redação conhecia Calderón, desde pequenininhos. Em meia hora, a matéria estava pronta e aprovada para a versão online. Que dor de cabeça eram essas versões online, leitor nunca entende que não acontece nada domingo à tarde, exceto em dias de Fla-Flu e de GP de Interlagos.

O repórter que escreveu a matéria foi o primeiro a compartilhar a notícia no Facebook, seguido por amigos, e por amigos de amigos. Quando o primeiro Zona Sul amante da arte viu a matéria, ficou comovido. "Calderón! Logo o Calderón, como é horrível a violência urbana". Resolveu fazer sua homenagem particular: reproduziu o sinal de positivo encontrado no morto, com estilizações da mãozinha de Curtir do Facebook, e escorreu do polegar algumas gotas de sangue. Postou. Em minutos, dezenas de artistas amigos dele haviam curtido a homenagem.

O jornal concorrente viu a matéria, e publicou minutos depois. A redação internacional, parceira, tratou de criar uma nota em outras línguas, com um breve resumo de vida e obra do grafiteiro. O jornal sensacionalista estampou na primeira página: "Presunto é foda e dá joinha depois de morto".

A estudante ficou impressionada com a notícia e achou que não poderia deixar passar em branco um acontecimento tão chocante. Mudou seu sobrenome no Facebook para "Sou Foda". "Carolina Sou Foda" mudou também a foto de capa, com a foto original do morto com o polegar levantado e o grafite ao fundo. Só para que todos entendessem a homenagem, e nenhum desavisado achasse que era só uma demonstração de soberba.

Os amigos, os amigos dos amigos e alguns amigos dos amigos dos amigos de Carolina acharam muito cult a ideia, e também trocaram seus sobrenomes. Em poucas horas, a família "Sou Foda" já era mais numerosa que a "da Silva" nas estatísticas do Facebook. Os editores da rede social trataram de impedir que os usuários continuassem usando esse nome, afinal de contas, era palavrão. Houve protestos. Uma fan page "Sou Foda, mas o Facebook não é" foi criada, curtida por milhares e rapidamente tirada do ar. A censura só aumentou o movimento.

A presidente da ONG achou que o acontecido não podia passar em branco. Rapidamente, promoveu uma passeata na Nossa Senhora de Copacabana. Grandes dedões em sinal de positivo verde-e-amarelos foram distribuídos. O kit, vendido a R$ 25, incluía a camisa com reprodução do grafite "Sou Foda". Os manifestantes entoaram canções de paz e fizeram um minuto de silêncio em um grande círculo, na praia.

Os telejornais mostraram detalhes da obra de Calderón, e o artista só não ganhou um Globo Repórter porque isso evidenciaria uma violência indesejada na cidade olímpica. A comoção era geral.

Sentado em seu sofá na Taquara, Calderón assistia a suas homenagens póstumas.

De primeiro, pensou em esclarecer o mal entendido rapidamente, e mostrar que estava vivo, bem vivo, e bem mais gordo que o defunto da foto. Quando discava para a polícia, viu mais uma chamada na TV com fãs emocionados, e resolveu desligar. Trancou a porta, desligou os telefones, ligou o computador, a TV e o rádio, e passou a semana toda emocionado. Não tinha dinheiro para pagar o aluguel do mês passado, porque não ganhava um tostão com sua arte, mas estava sendo finalmente reconhecido. Se soubesse que valia tão mais morto do que vivo, teria se matado há muito mais tempo, na primeira vez em que pensou nisso seriamente. Deliciou-se com suas homenagens póstumas. De sua vasta lista de grafites pelos muros do país, aquele sob o qual morrera não fazia parte da sua coleção, tinha certeza. Mesmo assim, recostado no sofá, vendo o Domingo Espetacular lhe render uma justa homenagem, ele murmurou:

"É... sou foda."

domingo, 6 de janeiro de 2013

Passado

Soltou a mão da mãe e correu para a entrada do museu. Nem imaginava que o grande pórtico em formato de 'M' tinha significados tão diversos para aquela estranha e distante cultura.

"Luzia, volte para cá! Não está vendo o homem? Vai pegar você!"

Luzia voltou-se assustada para o tal homem. Era grande, bem maior do que ela, as mãos segurando ferramentas que ela desconhecia. O rosto não parecia tão assustador, sabia que não era de verdade, mas por via das dúvidas, voltou para perto da mãe.

"O que aquele homem está fazendo, mãe?"

A mãe leu na placa indicativa "homem lavando louça". Não sabia bem o que aquilo significava, mas não podia deixar a filha em dúvida. Como todas as mães fazem de vez em quando, improvisou sem pensar muito.

"Ele está separando potes para a caça, filha."

Seguiram. Luzia se esticava na ponta dos pés para ver os conjuntos de potes. Não sabia porque todos os museus exibiam tantos potes. As pessoas antigamente deviam gostar muito de potes. Eram coloridos, transparentes, retangulares e redondos. Gostava dos que tinham tampa. A explicação ao lado da coleção era grande demais para a leitora recém alfabetizada, que resolveu soletrar apenas as letras da lateral de um dos recipientes: "TU-PPER-WARE".

Não tinha ideia do que significava aquela palavra, mas isso não importava muito. Não entendia grande parte das coisas que via em museus, mas achava interessante mesmo assim. Ao contrário das outras crianças, que corriam por entre os expositores sem se importar muito com o passado, Luzia tinha a sensação de que devia respeitar todo aquele arsenal de coisas velhas ali expostas. Era como conversar com o vovô: mesmo não entendendo muito do que dizia, sabia que devia ouvir e aguardar até que terminasse de falar. Havia uma conexão entre Luzia e aquelas coisas, que ela não sabia explicar.

Subiu as escadas e chegou a um grande salão com itens que não reconheceu. Leu sobre o portal "MÁ-QUI-NAS". O que era aquilo, afinal?

Letras enfileiradas em cubinhos, presas em um aparelho que não conhecia. Ao lado, um outro artefato ainda mais curioso, muito liso. Leu novamente com seu alfabeto pré-aprendido: "S-A-M-S-U-N-G".

"Mamãe, o que é isso, Samizugue?"

A mãe gostava de distribuir cultura à filha, mas ficava incomodada com essas perguntas. Para as crianças, os pais sabem as respostas. Mas para aquela questão, nem grandes especialistas estavam certos em torno de uma única resposta. Uns diziam ser uma inscrição indicativa de algum ritual, outros acreditavam que seria uma espécie de título dado a cavaleiros, após passar pelos testes da Tecnologia. Este era, aliás, tema que dividia os arqueólogos e cientistas: enquanto uns acreditavam que o deus Apple havia reinado na Era da Tecnologia, levando seus súditos a carregar o símbolo em formato de maçã no bolso, outros achavam que isso não passava de um amuleto de boa sorte. O que se sabia apenas é que homens de várias raças e aparências, cujas ossadas foram encontradas por todo o planeta, carregavam as inscrições da maçã e da SAMSUNG consigo, indicando que estes eram artefatos de grande importância. Havia os portáteis, e os de grande porte.

Vários desses exemplares estavam na frente da pequena Luzia, que indagava a mãe sobre aquela massa de aparelhos pretos e brancos, que ela desconhecia. E a mãe precisava de uma boa resposta.

"É o nome de um grande governante, Luzia. Pai daquele cara ali."

Luzia mirou o "cara ali". Era uma estátua de cabelos desgrenhados, um paletó como o de tantos outros e, curiosamente, o personagem trazia a língua de fora. O pai observava a placa que explicava quem era aquele homem curioso. Ela chegou perto do pai e viu como ele era bem menor do que a estátua. Mas ela admirava muito o pai. Ele nunca voltava de mãos vazias da caça, e além da comida sempre trazia uma flor para Luzia. A menina gostava muito das flores, porque elas coloriam seu quarto cinza, e ela não tinha muito o que fazer depois que ajudava a mãe na horta, a não ser olhar suas plantas.

Luzia se aproximou do pai, e pediu para que lesse o que dizia a placa. Ele apertou os olhos e tentou não demonstrar à filha o cansaço de seus olhos e a pouca prática com a leitura. Leu de uma só vez o que dizia a placa:

"Não sei como será a Terceira Guerra Mundial, mas poderei vos dizer como será a Quarta: com paus e pedras".